sexta-feira, 27 de março de 2009

Abrindo os olhos para o mar

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Projeto sobre crianças com deficiência visual

A única vez que estive perto de um deficiente visual por mais de meia hora foi a bordo do navio de pesquisa oceanográfica "Professor Besnard", da Universidade de São Paulo, durante a primeira Expedição Brasileira à Antártica. Era dezembro de 1982. Moacir era um técnico em eletrônica que embarcou em Santos junto com a tripulação e cientistas. Montou sua mesa de trabalho no convés superior atrás da cabine de comando, sobre a qual disputavam espaço uma parafernália eletrônica de cabos, fios elétricos, fita isolante e ferramentas eletrônicas. Além de uma estranha máquina de escrever elétrica Olivetti. Sua missão era reorganizar o sistema de rádio e comunicação do navio.
Até aí nada de novo, se não fosse pelo fato de Moacir ser um deficiente visual. Era totalmente cego! Sua retina era incapaz de receber e codificar no cérebro uma pequena e tão importante faixa do espectro da radição solar eletromagnética: a faixa do visível entre 400 e 700 nanômetros (1 nm = 109 metros). Também chamada de radiação fotossinteticamente ativa, pois é a única capaz de sensibilizar os cloroplastos na reação da fotossíntese, permitindo a vida no planeta. A mesma que atravessa nosso cristalino e penetra em nosso humor vítreo, projetando na retina as cores e seus milhões de tons entre a azul-púrpura e o vermelho-sangue. Os olhos de Moacir eram tão inúteis quanto vestígios evolutivos. Por isso ele usava mais o sentido do tato e sua "memória virtual" para desencapar e isolar fios, aparafusar e encaixar terminais elétricos, testar baterias e placas de sistemas integrados. E o olfato usava para identificar componentes eletrônicos queimados. Só não consertou o Termosalinógrafo de bordo porque não tinha as peças que faltavam. Mas descobriu o defeito pelo cheiro.
Parecia inacreditável a ideia de um cego assumir a responsabilidade de organizar a comunicação do navio, um dos componentes mais importantes da segurança naval. A navegação do pequeno Besnard ao longo do continente sul-americano rumo à Antártica precisava ser monitorada diariamente em relação às condições de vento e mar, através das mensagens e boletins meteorológicos recebidos a cada 3 horas. Em outras palavras nossa segurança e o sucesso da expedição estavam praticamente nas mãos de Moacir. Ou melhor, apenas na ponta de seus dedos sensíveis.
Foram quatro dias de viagem entre Santos e o Porto do Rio Grande no Rio Grande do Sul, onde faríamos uma pausa para abastecer o navio. Durante a viagem, quando Moacir não estava debruçado sobre os fios, ouvia atentamente através de um fone de ouvido enorme e preto (parecia tecnologia russa) os sons que vinham de sua estranha máquina de escrever adaptada para cegos. Um sistema que ele desenvolveu para "ouvir textos" datilografados. Se tivesse sido inventado no século XIX teria sido batizado de "Datilografonaudiômetro", ou coisa parecida. Cada letra do alfabeto e cada sinal gramatical representado por um tom da escala musical, de uma oitava acima ou abaixo, incluindo graves e sustenidos, era sonorizado na mesma sequência e com a mesma velocidade com que escrevemos.
Moacir literalmente ouvia os textos que recebia assim como ouvia os textos que datilografava. Toda canção tem letra e música. As dele se fundiam em uma coisa só. Como um maestro virtuoso era capaz de processar em milésimos de segundo um complexo quebra-cabeça sonoro para formar palavras, frases e períodos inteiros de informação textual codificada. Se a música desafinava era porque havia algum erro gramatical que era imediatamente corrigido. E ele nos deixava ouvir quando ligava os fios na caixa de som. Ficávamos boquiabertos com aquela engenhoca e sempre que sobrava um tempo disputávamos a entrada daquela modesta oficina eletrônica e de rádio-comunicação para ouvir as "Sinfonias de Moacir".
Moacir interagiu muito com toda a equipe. Nos visitava frequentemente no laboratório de pesquisa e perguntava tudo sobre nosso trabalho. Como não poderia ser diferente, usava as mãos para sentir grandes volumes e apenas alguns milímetros quadrados de epiderme da ponta dos dedos para visualizar mentalmente os detalhes de nosso material de trabalho, desde um complicado correntômetro até uma simples pipeta. De tarde sentava no banco no convés superior do navio sentindo os odores da maresia, o vento no rosto e o balanço das ondas nos ouvidos internos.
Após 4 dias de navegação e a missão cumprida, Moacir desembarcou no Porto de Rio Grande. Não foi permitida sua participação na expedição até a Antártica devido à deficiência visual. Uma decisão que parecia equivocada, pois seus outros sentidos eram muito mais desenvolvidos do que a média das pessoas sem deficiências físicas, tornando-o mais apto para a viagem do que alguns membros da tripulação (a começar pelo comandante, que foi despedido imediatamente após a expedição).
Faz 25 anos que nunca mais ouvi falar de Moacir. Lembrei-me dele alguns anos mais tarde quando soube que a gigante japonesa CASIO havia inventado uma máquina de calcular para deficientes visuais, com teclas sonorizadas. Depois disso só quando ouvia Steve Wonder. Mas de repente tomei contato novamente com a dificuldade de pessoas com deficiência visual quando Chayane, uma aluna do curso de graduação em Oceanografia da UFPR, veio pedir apoio da Associação MarBrasil para desenvolver sua monografia de conclusão de curso, cujo título é "Abrindo os olhos para a natureza". Trata-se de um projeto de educação ambiental marinha para crianças e adolescentes com deficiência visual. São crianças simples de famílias humildes, que não participam de nenhuma para-olimpíada televisionada e, portanto, poucas vezes são lembradas nos projetos de inclusão social.
A metodologia e os recursos didáticos adotados pelo projeto são obviamente limitados. Mas eficientes. Baseia-se no aprendizado sobre a biodiversidade marinha e o ambiente costeiro através dos outros 4 sentidos. O ensino se desenvolve em sala de aula e no campo. Em sala de aula, Chayane usa cartilhas com desenhos em alto relevo de animais marinhos feitos com tinta epóxi. Um método Braille figurativo. Também usa modelos que se assemelham aos animais. Por exemplo, espeta palitos em uma bola de isopor para explicar sobre a forma de um ouriço. Usa bexigas com água e elásticos para revelar o volume e a forma de uma águas viva. E modelos de tartarugas em tecido.
O trabalho de campo envolveu uma logística um pouco mais complicada. O texto a seguir baseia-se nos relatos de Chayane, voluntários da equipe de campo, fotos e vídeos. O projeto organizou duas expedições de campo, uma para a Ilha do Mel, um dos cartões postais do litoral do Paraná, e outra para visitar o Projeto TAMAR em Florianópolis. A Ilha do Mel é rodeada por praias, dunas e alguns costões rochosos, com uma biodiversidade marinha representativa da costa sul brasileira. O pequeno grupo seguia de mãos dadas em fila indiana, guiado por Chayane e seus colaboradores voluntários através das trilhas entre a vegetação costeira até a praia. A maioria nunca tinha andado em um barco, sentido o cheiro da maresia, a consistência da areia e das pedras. Também nunca havia molhado os pés e sentido o gosto salgado da água do mar. A expedição seguinte foi para visitar o Projeto TAMAR em Florianópolis e pelo que me contaram também foi um sucesso.
Evidentemente o projeto limita-se a um nível muito básico de ensinamento, tendo em vista os recursos limitados e a didática específica e adaptada. Por enquanto só revelou a existência e as formas gerais da biodiversidade marinha e seu entorno ambiental através de outros sentidos. Por outro lado, para quem nunca viu (literalmente) nada, o contato direto com a natureza marinha foi decididamente uma experiência inesquecível. Enfim o projeto está cumprindo suas metas, com a dedicação sincera e delicada de Chayane e dos monitores e voluntários que se apresentaram para colaborar com ela. Essas pessoas também saíram mais enriquecidas.
A experiência de ajudar crianças deficientes visuais, com um imenso desejo de conhecer melhor o mundo ao redor, nos ajuda a perceber um pouco a futilidade de alguns aspectos de nossa rotina diária e, sobretudo, da ignorância do mundo em que vivemos. Assim como disse Mário Quintana "o verdadeiro analfabeto é aquele que sabe ler mas não lê", alguém também disse que "o verdadeiro cego é aquele que enxerga mas não vê". São versões diferentes da ignorância, talvez o defeito mais comum do ser humano. De outra forma não estaríamos tão ocupados buscando fórmulas mágicas para evitar a miséria, a poluição, a perda de biodiversidade, as extinções, a contaminação da água e o aquecimento global.
Chayane lutou contra a ignorância em diversas ocasiões quando foi pedir apoio logístico e financeiro para viabilizar o projeto. Escreveu para várias empresas enviando material de divulgação com fotos e tudo. Esforçou-se até o último momento para conseguir um micro-ônibus de empresas de transporte e turismo. Nenhuma atendeu às demandas modestas do projeto. A Universidade Federal do Paraná acabou cedendo o ônibus depois de um ofício do coordenador do Curso de Oceanografia. Felizmente o projeto também recebeu apoio de comerciantes locais. A Burguesia serviu almoço de graça para todas as crianças e para a equipe de voluntários. Uma padaria local deu pão e um bolo enorme para o lanche na praia.
Atualmente estima-se que existam 1,4 milhões de crianças cegas no mundo. No Brasil entre 27 e 32 mil, a maioria com pouca expectativa de vida. Portanto, a batalha de Chayane pela inclusão social de suas crianças só esta começando. Para vencer como Moacir a bordo do Besnard, vai ser preciso enfrentar os velhos obstáculos do egoísmo e da arrogância, e as demais manifestações da ignorância humana

Fonte: Planeta Educação

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