Paulinho Saturnino Figueiredo
Se existe, como existe, a memória afetiva, certamente existirá algo como uma, digamos assim, memória efetiva. O estímulo externo se intromete despretensioso, e, como se do nada, torna-se um soco no peito. Não produz o abafamento tão conhecido pelos apaixonados ou saudosos, mas traz de volta uma aflição medonha, como se um fato vivido, ou presenciado, ameaçasse se repetir, e sem nenhuma razão objetiva ou aparente. Algo como um pesadelo relâmpago que nos surpreende acordados ao ver, como no presente caso que me toca, imagens na TV e nos jornais.
Meados da década de 1960, lá fui eu com uns amigos de colégio, e adjacências, encontrar o mar. Não me lembro se foi meu primeiro ou segundo contato com o reino de Iemanjá, só sei que meu amor pelo mar se tornaria eterno e infinito, apesar dos tão, e cada vez mais, raros envolvimentos. No compartilhamento daquele final de adolescência, o grupo era puro ânimo e muita gentileza. Na certa, generosidade também não faltava, posto que minhas muletas e meus aparelhos ortopédicos certamente exigiam dos parceiros algumas constantes intervenções de apoio naquele ambiente adverso, e estranho para meus hábitos e treinamentos. Minha família não era afeita a férias e viagens, eu não tinha traquejo para tais convivências e enfrentamentos ambientais.
Ficamos instalados num velho casarão, secular, de largas paredes de pedra, porões, e piso de longas tábuas corridas que produziam aqueles ruídos singulares, ecoando os passos. As paredes brancas, as janelas e portais azuis, compondo a distinção devida naquele vilarejo habitado por pescadores e eventuais, mas não muitos, turistas. À pequena distância do mar, erguido numa pequena elevação, o casarão produzia na imaginação dos que por ali passavam reflexos de sua própria história. Logo atrás no vilarejo, a beleza da serra do mar num paredão íngreme, invadida por algumas extensas plantações de bananeiras, que, aliás, davam algum fôlego econômico à vida simples do lugar. Diziam que Monsuaba era uma corruptela do francês "bon soir!", e que fora assim que o lugarejo herdou tal nome, já que sua posição geográfica, como se na curva de pequena península, fizesse do sol da tarde o espetáculo inesquecível, e não do sol matinal, como na maior parte do nosso litoral.
O que aqui relato só brota dessa memória subitamente despertada em choque, na qual a imaginação e a fantasia podem ocupar lugar maior que o pretendido e desejado pelo relatante. O município que albergava tal paraíso era Angra dos Reis, RJ, e a tal localidade era bem vizinha dos estaleiros da Verolme, um monstro que parecia bem estranho aos pacatos rítmos da dita Monsuaba. Naquele verão, as chuvas intensas e persistentes arrasaram o vilarejo, as águas subiram, cobrindo e arrastando as construções em sua parte mais baixa, fazendo da praia um lamaçal, ao qual se misturavam restos de casas e de plantas, em especial de bananeiras que escorreram junto com parte do morro. Com a queda das pontes de acesso, o vilarejo ficou em completo isolamento, moradores e turistas dividiram, amontoados, espaço nas casas e lojinhas mais altas, e a comida ficou racionada até que ajuda mais efetiva chegasse, um ou dois dias depois, por mar. Lembro-me que todos lamentavam muito a morte de uma senhora, muita querida, vitimada por uma viga de sua casa desmoronada.
Naqueles dias de sol que antecederam a catástrofe, o que mais se ouvia no rádio era outro explosivo sucesso de Roberto Carlos, "A Namoradinha de um Amigo Meu". Porque me lembrar disso? É que, justamente, a música fazia uma crônica cruel do que se passava comigo, envolvido que eu estava, meio clandestinamente, com a namoradinha caiçara do amigo que me convidara para tais dias inesquecíveis. Ela, menina bonita e sestrosa, filha de pescador, que via no verão a chance de se ampliar no mundo; eu, com os charmes específicos que a deficiência física sempre fora ensinando, ostentanto um rabo-de-cavalo raro para a época, e usando um sorrisão como arma secreta, usufruindo do tempo extra de vagabundagem que eu gastava por ali mesmo, à sombra das árvores, enquanto a turma fazia passeios e caminhadas que não me eram acessíveis. Acho mesmo, e me perdoem a arrogância, que o ambiente encantado do lugar se compatibilizava mais com minha quietude que com a desperdício exacerbado de energias daquela rapaziada, mas, a chance de ser puro despeito não deve ser desprezada.
Era na casa de tal cobiçada donzela, a noite já tendo imposto seu manto, que eu estava quando a tempestade caiu de vez. Casa simples, de alvenaria, construída na beirinha da areia, quase sem diferença de nível com o mar. A água se infiltrando por debaixo das portas, e as imagens revêm com nitidez, marcou o primeiro alarme. Raios, estrondos, as águas não paravam de subir. Senti a barra ao ver o nervosismo na face daquele homem experiente, forte, domador dos medos da pesca. Ele decidiu que levaria a mulher e os filhos para a parte mais alta do lugar, e que voltaria com ajuda para me resgatar. Eu explicara a ele a dificuldade de meu deslocamento em tal situação, inclusive pelo peso dos aparelhos metálicos que me envolviam as pernas, e de minhas inseparáveis muletas, à época Sucupira e Rosa Amélia (posteriormente elas foram rebatizadas algumas vezes, inclusive homenageando mães de amigos). Tomou ele, ainda, a iluminada providência de me deixar em pé sobre a cama de casal, onde eu teria ao alcance das mãos umas peças de madeira para me sustentar, caso a coisa piorasse. E foi o que aconteceu.
É inacreditável como as catástrofes podem evoluir como se elidindo a dimensão do tempo, em especial para quem se surpreende diretamente no alvo. Os clarões que os raios produziam lá fora me faziam ver o quanto e quão rápido as águas e a lama subiam. A base da janela do quarto já sumira sob tal maré. A água envolvia minhas pernas, eu nem via mais a cama sobre a qual me mantinha. Achei que era o fim, e pelo que me lembro, talvez aqui a memória se predisponha mais ainda a dar ares dramático ao roteiro, senti-me calmo, ao menos desespero não havia.
Para os que, como eu, não transitam no sobrenatural, conto em paradoxo: vozes de anjos invadiram aquela solidão em que me encontrava. "Ei, companheiro, aguenta firme... fica calmo... a gente veio te buscar", e, felizmente, não eram vozes de nenhum além. Eram dali mesmo, de gente corajosa e solidária. Entrou o primeiro cara pela janela, amarrado a uma corda, e com outra para me amarrar. A gente só se via quando os raios faziam luz. Logo um outro se postou no vão da janela, estendendo a mão. Ao todo eram quatro ou cinco homens, gente dali. Quando ele passou a corda em volta do meu peito, pois não havia outro modo para enfrentar correnteza tão feroz, abracei-me às muletas com um dos braços, e deixei o outro ser puxado. Vem aqui, nesse ponto da lembrança, um tremendo turbilhão: os caras gritando entre si, água entrando boca e nariz adentro, as costas se escalavrando, sem profundidade, numa cerca de arame farpado que boiava entre grandes folhas. E puxa, e puxa, e vai, e grita, e puxa... e eis que de repente, não mais do que de repente (parafraseio o poeta...) terra mais ou menos firme sob o corpo. Fiquei um pouco deitado na escada de uma casa, sob chuva, agarradinho às muletas, sentindo-me mais inteiro que nunca. Aqueles homens comemoraram, me abraçaram, se abraçaram, e logo me carregaram para uma espécie de bar/mercearia, onde já estavam meus amigos de viagem, aflitos, e boa parte da população do lugar.
Mas a alegria, que era só minha, quase obscena em meio a tanta desgraça, não terminara. Pouco tempo depois, não sei quanto, eu ali me refazendo, tendo tomado uma pinga, comido algo que me deram, uma voz me conclama apavorada: "porra, olha lá o que virou...". O próximo relâmpago revelou a cena. Pelo que dava pra ver, apesar da distância não ser longa, daquela casa onde eu estava só sobrara a base, os alicerces. A luz no amanhecer seguinte tirou qualquer dúvida. Demorassem mais algum tempo, na certa pequeno, aqueles anjos caboclos a me buscar, e na certa me encontrariam nas misturas daquele lamaçal que só dias depois passou a ser revolvido. E essa lembrança agora me emociona, muito, me deixando em estado de fusão solidária com os que agora comemoram seus sobreviventes, ou buscam e choram seus mortos, talvez ainda sob a lama que invadiu a mesma Angra dos Reis, ou aquela que rasgou trágica cicatriz num dos paraísos da Ilha Grande. Na certa a entrada do Ano Novo, e esse tão especial pra mim, agravou esse aperto que agora sinto no peito.
Fonte: http://rindodenervosoainda.blogspot.com/
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