segunda-feira, 3 de maio de 2010

Quando só o faro basta para ser um bom repórter

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Uma das características do jornalista é a capacidade de observar os fatos para visualizar o que é notícia. Essa capacidade Lucas Maia, de 24 anos, repórter de O Estado de S. Paulo, não dispõe. Pelo menos fisicamente. Maia nasceu com a Síndrome de Leber, rara doença genética que impede a reprodução das células da retina, levando o indivíduo à cegueira total em pouco mais de dez anos.

Lucas Maia abraçado à sua cadela, Annie: perseverança ajudou o repórter a superar obstáculos e a ingressar no concorrido mercado do jornalismo. Hoje, é repórter de política do "Estadão".Mesmo assim, foi selecionado em duas das mais exigentes "peneiras" do mundo jornalístico: passou, na primeira vez que tentou, na prova do Curso Abril e do Curso Estado de jornalismo. Uma vez que soube que teria a oportunidade de trabalhar na editoria de Política e Economia, sua favorita, Maia escolheu a redação do Estadão.
Descobertas – Durante o curso que o transportou para dentro do jornal, Maia e o diretor do Curso Intensivo de Jornalismo do Grupo Estado, Francisco Ornellas, fizeram um combinado. "Iríamos descobrir juntos quais adaptações e que tipo de auxílio eu iria precisar", diz o repórter. "Acabamos descobrindo que eu precisava de poucas adaptações", completa Maia.
O diretor cita as principais características do ex-aluno: "É um repórter irrepreensível, tanto no que diz respeito ao texto quanto à apuração. Mas, principalmente, a preparação que ele faz antes de ir para a pauta é algo de especial. Ele se prepara com muito mais cuidado do que os demais, seus sentidos são muito concentrados em examinar o mundo exterior: os cheiros, as dimensões, os elementos da paisagem, os personagens."
Um exemplo curioso citado por Ornellas: "Durante os três meses do curso, tivemos duas viagens: uma para o Rio Grande do Sul e outra para Rondônia, onde visitamos o Rio Madeira. No barco, perguntei a um grupo de estudantes qual era a largura média do rio, e nenhum soube me dizer. Cheguei para o Lucas, que estava sozinho, e fiz a ele a mesma pergunta. Ele me respondeu: 'Olha, no ponto em que estamos eu não sei, mas a média deve ser algo em torno de 1890 metros'".
Lucas não vê, mas enxerga. E muitas vezes melhor do que muitos de nós, acostumados somente a confiar – assim como Tomé – naquilo que nossos olhos testemunharam. "Certa vez, perguntei ao Lucas o que ele estava achando de São Paulo", diz Ornellas. "Ah, eu acho uma cidade muito bonita", afirmou, para espanto geral. "Achei lindo o bater de asas dos pássaros na Praça da Sé", disse o jovem ao professor.
"O Lucas tem uma alma leve e, muitas vezes, ele escolhia 'enxergar' o lado bom das coisas, que as outras pessoas não visualizariam", diz o diretor do curso Estado de jornalismo.
Sentidos – O próprio repórter analisa de maneira crítica os homens e sua "crença cega" na visão. "As pessoas acreditam piamente naquilo que veem, se esquecem do poder dos outros sentidos e se esquecem que a vista dá margem a ilusões. Outros sentidos, como o tato, são bem mais concretos", ensina.
E é o tato um dos principais aliados dele para 'enxergar' o mundo. "Eu quase não sonho com imagens; meus sonhos são cores, sensações. Mas quando sonho com imagens, é a materialização de algo que eu toquei e me sensibilizou", conta o jornalista.
Jornalismo – Atualmente, de acordo com o próprio Maia, ele tem apenas "visão de luz". Porém, nem sempre foi assim. Nasceu com pouca visão, algo em torno de 20% em cada olho. Contudo, seus pais optaram por alfabetizá-lo em escolas convencionais em Campos dos Goytacazes (RJ), sua cidade natal. Sempre irrequieto e comunicativo, prestou vestibular para Relações Internacionais, Filosofia e Psicologia. Entrou em Filosofia na UFRJ e detestou. Fez um semestre e largou o curso.
Menos de um ano depois já estava cursando jornalismo na PUC-Rio, convicto "desde o primeiro dia de aula" que era isso que queria fazer pelo resto da vida. Quando cursava o primeiro semestre do seu ano de graduação, resolveu vir para São Paulo prestar os cursos Abril, Folha e Estado de jornalismo.
Hoje em dia mora sozinho numa espécie de pensionato e flat no bairro da Pompeia, de onde toma o ônibus para ir para a redação de O Estado de S. Paulo, todos os dias. Seu apartamento, ao contrário do que poderiam pensar, não tem caracteres em Braille impressos na cozinha ou pontas aparadas nos móveis para não se machucar. "A única coisa que eu não posso ter no apartamento é uma mesinha de centro ou algo do gênero, no qual eu possa bater a canela", explica.
Computador – No trabalho também houve poucas adaptações. Maia usa um computador convencional, que necessita somente da instalação de um programa que dita para ele, por avisos sonoros, o que está na tela. Seu telefone celular funciona de maneira similar.
Seus entrevistados costumam estranhar quando percebem a deficiência do entrevistador. Porém, isso é um fato pouco frequente e rapidamente contornável por Maia, que usa o jogo de cintura e contorna a situação.
"Existe um estranhamento à primeira vista, mas até que eles (os entrevistados) disfarçam bem. Acho que a relação entre o repórter e o entrevistado exige um certo 'tomar de rédeas' por parte do primeiro. Não me sinto inferior nem me coloco como alguém passível de pena ou dó, e acho que meus entrevistados percebem isso", afirma.
Seu dia-a-dia é agitado: musculação três vezes por semana, francês e curso de economia, os dois últimos uma vez por semana. Isso além da vida na redação e, claro, sua vida social. Vai ao cinema com amigos, bares e até exposições.
"Adoro ir a exposições de arte. Acho que é um acontecimento cultural muito rico. Vou com amigos e colegas, de preferência com alguém que entenda de artes. Eles me falam o que está na tela e eu leio os textos de apresentação, que costumam ser bem explicativos".
Companheira – Seu maior acessório – e a mais fiel companheira – é Annie, uma cachorra mestiça de labrador com poodle de sete anos. Norte-americana, ela só responde a comandos em inglês, que o dono profere bem baixinho. Maia está com ela desde os dezoito, embora, explique, "somente deficientes visuais acima de dezesseis anos podem ter um cão-guia".
Annie vive para cuidar dele e, nesse sentido, a relação de um indivíduo cego com o seu cão-guia é de mutualismo, pois a responsabilidade do jornalista para com ela é enorme também.
"No início eu não confiava nela, nem ela em mim. Era um fardo porque éramos como dois estranhos que precisavam sempre estar alertas um com o outro", lembra. Ela pode, sim, como dito anteriormente, se "desgarrar", diz Maia.
"Porém, quando ela está com o arreio que a prende junto a mim, não podem nem brincar com ela, porque ela está a serviço", diz, reconhecendo em sua maior companheira uma de suas próprias características mais marcantes: o compromisso incondicional com a profissão.

Fonte: Diário do Comércio - Marcelo Marcondes - 2/5/2010
Fotos Paulo Pampolin/Hype

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